Estou bem agora. A febre alta já passou e restou apenas um pouco de fraqueza como consequência. Só deparei-me comigo mesma do outro lado. E essa experiência não foi tão mal assim.
Tudo começou dia desses, quando eu acordei mais cedo. Muito cedo, por sinal, não havia nem sequer indícios de sol. Levantei, olhei ao meu redor e o silêncio daquela casa assombrava o meu interior profundamente. Todos ainda estavam dormindo e pareciam dormir para sempre.
Cheguei na janela, a rua ainda estava escura e silenciosa. Alguns postes acesos e um sinal pequeno de que em breve a manhã de um novo dia iria nos presentear com sua vinda. Vinda esta que iria me deixar profundamente doente. Mal sabia eu disso, antes tivesse continuado a dormir... a sonhar...
Mas estava sem sono. Inquieta. Com vontade de sair daquele quarto, deixar aquela casa. Sem porquê, sem razão, apenas vagar por aquelas ruas buscando encontrar algum motivo por sequer estar ali. E assim fui, de estômago vazio, mente vazia e mãos vazias.
Tranquei o portão do meu prédio. Olhei para um lado e para o outro. O caminhão de lixo não havia passado no dia anterior e o lixo que estava amontoado nos postes, havia sido remexido por catadores essa madrugada. Em resumo, minha rua estava uma sujeira. Mas ali não passavam carros. Caminhei até a rua principal, que é transversal a minha, onde pude vivenciar já da esquina um dos primeiros vestígios de presença humana. Um ônibus passou isoladamente e um carro, alguns minutos depois. Nenhuma loja ainda sequer aberta.
Foi nesse instante que me veio um arrepio apavorante. Olhei pra trás e não havia ninguém. Olhei pro céu e notei que o dia haveria de ser nublado. Olhei para mim mesma e me flagrei então, com medo. Medo de estar ali, sozinha àquela hora. Medo de deparar com o que eu realmente quero encontrar. Medo do que a vida me aprontou naquelas circunstâncias e até que ponto eu cheguei, meio que distraída, meio que seguindo os meus instintos. Medo de enxergar verdadeiramente as coisas.
E aquela manhã bem cedo parecia querer me mostrar muito! Ignorei meu medo e segui em frente.
O que a vida apronta de vez em quando?! Uma viagem inesperada? Um alguém inesperado? Só sei que parecia que eu não iria chegar a lugar algum.
Mas por incrível que pareça, cada vez mais que eu pisava aquele cimento, que ao mesmo momento passava um ônibus ou outro, um carro ou outro, cada vez mais o medo de estar ali fisicamente ia desaparecendo. Parecia que aquele céu, muito cinza para um começo de dia, ia fazendo mais sentido pelo simples ato de existir. O chão tão cinza e tão sujo sobre os meus pés também fazia sentido de existir ali em baixo. Em breve haveria de chover e depois da chuva, viria o sol e iluminaria toda aquela rua, e depois do sol, o chão haveria de secar e estar limpo novamente. E eu, que era apenas uma partícula atômica naquele monte de emaranhado de coisas que buscam um constante sentido para sua existência, haveria de voltar para casa e ver que todos já estão acordados.
E assim seria, se não fosse pela minha insistência e curiosidade de sempre querer ver o que há na próxima virada de rua. Continuei a caminhar naquele cenário perfeitamente montado para um estranho passeio matinal, considerado meio desagradável pelo senso comum. Já nem ligava pro fato de não ver ainda expressão facial sequer. Não havia pessoas na rua naquela manhã. Se era isso que eu buscava, teria de esperar um pouco mais. Mas já estava cansando. Queria voltar.
Parei no ar um segundo. Senti como se eu estivesse deixando aquele local, mas não da maneira convencional. Comecei a sentir meu corpo flutuar. Meus pés não pisavam mais aquele chão. Via a rua lá embaixo, bem pequena. Nenhuma árvore ao redor. Nenhum sinal de vida. Só cimento, e eu, voltando pra casa, pequena e quase que invisível vista daquela distância. Carregava comigo todo os conflitos da rua e ainda todos os olhares, expressões e sentimentos que eu não vi.
Mas nada mais importava, queria apenas chegar em casa e dizer a quem estiver interessado, que eu estou bem. Queria realmente estar bem, mas minha imunidade ficou baixa.
Assim que eu abri o portão do meu prédio, senti então todo o peso daquele passeio recair sobre o meu corpo todo. Foi quando eu fiquei doente. Entrei em casa e fui direto para a cama, nem pensei muito no que havia acabado de acontecer. Ainda era muito cedo e não era a hora de haver pessoas acordadas. Só eu, mas agora queria dormir.
Implorei naquele momento, uma trégua para o meu corpo. Pedi que cada célula permanecesse firme e não me deixasse adoecer. Mas era tarde demais.
A febre durou dois dias. Dois dias inteiros sem sequer sair a rua, independentemente de qualquer horário que fosse. O que sobrou, foi a lembrança daquele céu cinza e as sensações igualmente cinzas daquela estranha manhã, que hoje, pensando bem, se mistura a ficção.